segunda-feira, 17 de junho de 2013

Copa do Mundo para quem, para quê?

O nascimento de uma resistência, no sul, para conter os abusos causados por megaeventos


Quem observa de fora pode imaginar que o Rio Grande do Sul é um Estado mais politizado onde as violações aos direitos humanos são menores e os abusos não ocorrem. Ledo engano. Apesar de ser o único cujos estádios não receberam recursos diretos do governo federal para suas obras – os próprios clubes são os responsáveis pelas dívidas –, as obras de mobilidade urbana estão no centro do debate social. “As violações se dão nas mais variadas esferas e uma das principais são as remoções forçadas em detrimento das obras de infraestrutura. Nosso cálculo aponta que mais de 200 mil pessoas serão removidas no Brasil em função dos megaeventos.
Esse número dá conta também das pessoas que foram ameaçadas, mas que em algum momento realizaram resistência e o governo recuou”, esclarece Claudia Favaro, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Para ela, podemos esperar pouco retorno dos investimentos realizados para o mundial e que a maior contribuição está relacionada à possibilidade de se desenvolver uma cultura do esporte como resgate à cidadania. “De resto é um grande negócio, uma venda de imagem de cidades, uma venda de insumos de construção civil, uma venda de territórios, uma venda de pessoas. São só trocas comerciais. Se o Brasil conseguisse valorizar sua cultura sem colocar mulher pelada e carnaval, poderia ter um retorno interessante para o país”, complementa.

Leia a entrevista.

Como nasceu o Comitê Popular da Copa?
O comitê com este nome existe desde o final de 2010 e nasceu depois da luta e derrubada do projeto de lei que tentava alienar a área do Morro Santa Tereza, em Porto Alegre, por um valor irrisório, que criou toda uma mobilização popular na cidade, sobretudo relacionado aos moradores da região, e foi então que os movimentos sociais começaram a se organizar. Depois, quando saiu a matriz de responsabilidades, entendemos que próximo desse local estavam ocorrendo situações parecidas, de desapropriação e remoções, que foi o que nos levou a discutir essas questões da Copa. Desde então o processo vem se acelerando com a proximidade do evento.
No final de 2010 ocorreram em são Paulo e no Rio de Janeiro dois eventos importantes, em que se organizou de maneira mais sistemática como iríamos pensar os impactos no Brasil do ponto de vista do enfrentamento da especulação imobiliária tendo em vista os megaeventos. Apoiadores e pessoas que viveram essas experiências em outros contextos se reuniram com diversos atores da sociedade civil para compartilhar esses conhecimentos. A partir dessas reuniões criou-se um encaminhamento para que cada cidade criasse um comitê popular da copa para ter uma unidade no país no que diz respeito a monitorar os impactos e denunciar as violações.

Qual o propósito do trabalho dos Comitês Populares da Copa?
Os comitês são locais, onde vários outros grupos da sociedade civil, ONGs, movimentos sociais, universidades, órgãos públicos – como o Ministério Público ou a Defensoria Pública – se organizam e compõem tais entidades nas doze cidades-sede. Eles buscam monitorar os gastos e ser um agente mobilizador da sociedade para garantir que os direitos humanos não sejam violados e que se acelerem em detrimento da organização desses megaeventos, seja ela o que for, Copa do Mundo, Olimpíada e, em Porto Alegre, a questão da Fórmula Indy que está sendo discutida ultimamente.
Todos eles têm impactos muito característicos que ocorrem em função dessas violações pela necessidade de reestruturação urbana. Há muitas pessoas que falam que é o momento de repensar a cidade e de fazer grandes obras, mas os comitês questionam esse tipo de projeto de cidade, o que há por trás dessa proposta toda e quem paga a conta depois. Resumindo, a proposta do comitê é articular os atingidos, as monitoras, as violações e dar voz aos mais variados setores, principalmente os mais vulneráveis.

Quais são as principais demandas dos Comitês Populares da Copa?

As violações se dão nas mais variadas esferas, e uma das principais são as remoções forçadas em detrimento das obras de infraestrutura. Nosso cálculo aponta que mais de 200 mil pessoas serão removidas no Brasil em função dos megaeventos. Esse número dá conta também das pessoas que foram ameaçadas, mas que em algum momento realizaram resistência e o governo recuou.
Além disso, tem a questão da criança e do adolescente; do tráfico de pessoas, que se intensifica muito; a questão da prostituição e da violação das mulheres, sobretudo no Nordeste; a questão do trabalho, onde, segundo a Lei Geral da Copa, os trabalhadores informais não podem ter sua fonte de renda, o que prejudica uma camada da sociedade; os trabalhadores formais da construção civil, que trabalham em jornadas muito extensas e que não têm o reconhecimento financeiro merecido – muitas greves ocorreram e, até mortes, devido a toda uma precarização que não é tratada nos meios de comunicação.

A violência institucional no que diz respeito às forças de segurança. Tem uma lei muito preocupante, que é a chamada lei do terrorismo. A repressão nas cidades está se agravando muito. Percebemos isso em Porto Alegre, mas no Rio de Janeiro e São Paulo também está endurecendo. O direito do cidadão de se manifestar está sendo colocado como crime. Então, nossa democracia está sendo posta em dúvida.

Quem está em situação de maior vulnerabilidade diante dos grandes projetos do Estado para a realização desses megaeventos, como Copa e Olimpíada?
São as pessoas que moram na cidade informal, que adquiriram um espaço na cidade para sobreviver e terem suas rendas, mas que são de fatos informais, pois não têm o título da terra, mas que moram nos locais a mais de 30 ou 40 anos. Já existem leis previstas que garantem o direito à propriedade dessas pessoas e, mesmo assim, estão sendo removidas de forma violenta, porque não lhes dão alternativa.
Ainda há as pessoas que vivem nas ruas; a higienização e elitização dos espaços públicos só fazem com as que as pessoas com mais acessos é que tenham direito ao espaço coletivo onde a cidade passa a selecionar quem participa e quem não participa dela. Quem realmente está sendo mais atingido é a população mais pobre. É claro que alguém vai ganhar com Copa, haverão oportunidades sendo geradas, virão turistas, mas o que vai gerar é do ponto de vista do capital, econômico e concentrado.

Que desafios se delineiam nos próximos dois anos até a realização dos jogos?
O principal desafio é manter-se vivo, manter-se na resistência. Os momentos que chegam são tenebrosos, basta ver o que aconteceu com as árvores em Porto Alegre com a prisão dos meninos e meninas que tentaram impedir o corte. A polícia está cada vez mais violenta, a repressão às manifestações está cada vez mais intensa. Diálogo com os entes e esferas públicas que não houve até agora não vai ter. Houve em Porto Alegre uma aproximação importante da Defensoria Pública, que criou uma comissão interna para tratar disso.
Então, a dificuldade financeira que tínhamos para contratar advogados para contestar os pedidos de despejo e remoção, por exemplo, foi solucionada, sem contar que será importante para os próximos passos na questão jurídica. Mais do que tudo isso, nosso desafio é se manter em pé e mobilizar a sociedade em torno de tudo que está acontecendo no país, que não é uma coisa tão tranquila, porque são hectares de terras passados à iniciativa privada, enquanto as escolas estão caindo aos pedaços.

De que maneira interesses públicos e privados se relacionam neste contexto?
Os interesses convergem para um mesmo local, o “desenvolvimento”. O desenvolvimento é importante, mas ele tem que ser redistributivo, tem que ser inclusivo, tem que ser um desenvolvimento para integrar as pessoas. Porém, quem está ganhando até agora com esse desenvolvimento é o capital privado. O Estado, mais que em qualquer outro momento, está operando sua máquina para fazer valer as exigências de uma empresa privada como a Fifa. Para isso o Estado abre mão de diversas leis.

Quais foram os principais abusos identificados pelo Comitê?

A entrega de áreas públicas à inciativa privada, pois onera o Estado. A questão das remoções e a forma como o Estado tem feito isso. Por exemplo, sabemos que a ampliação da avenida Tronco, em Porto Alegre, está relacionada não à questão de mobilidade urbana, mas para facilitar o escoamento dos entulhos da implosão do estádio Olímpico e para a construção das torres da OAS, que não interessa à população. A violência institucional está desleal.
Tivemos um despejo violentíssimo na avenida Padre Cacique, com atiradores de elite e o Batalhão de Operações Especiais da Brigada Militar, fazendo uma pressão terrível ao vivente que estava dentro daquela casa, seja pelo motivo que for: é desproporcional. Tem também a privatização dos espaços públicos, a repressão aos artistas e moradores de rua. Lembro que há dois anos, quando os moradores de rua moravam embaixo do viaduto Otávio Rocha, em Porto Alegre, a prefeitura lavava as paredes com jatos de água sem pedir para que eles saíssem e molhavam todas as suas coisas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário