Postado
por Juremir em 14 de
setembro de 2012 - História
Raramente as questões de dinheiro entram nas cartilhas escolares sobre a
vida dos heróis de um povo. Antônio Vicente da Fontoura, porém, foi obrigado a
cumprir uma última missão depois de vencer seus adversários internos e de
costurar a paz com o império. Coube-lhe, embora não fosse o presidente da
comissão, distribuir o dinheiro das indenizações. Em 27 de fevereiro de 1845,
no seu Diário, nos últimos ajustes para a rendição de Ponche Verde, obtidas
certas concessões do governo central, ele já se queixava da lentidão do “pardo
Joaquim Pereira de Borba”, inspetor do tesouro, encarregado por Lucas de
Oliveira “de tirar a relação dos credores do estado para serem pagos”. Parecia
que algo suspeito se preparava e até Caxias desconfiou. Afinal, como observou
Fontoura, Borba levou dois meses para realizar um serviço de, no máximo, quatro
dias.
A infâmia nunca é modesta. Requer grandes meios. Em carta de 25 de
fevereiro de 1847 (Revista do IHGRS, IV trimestre de 1928, p. 538-542) aos
demais membros da comissão de indenizações, Antônio Vicente da Fontoura
descreveu o que chamou de “os quatro dias do inferno”, período em que,
instalado em Porto Alegre, pagou as indenizações. Quando chegou, recebido pelo
presidente da província, soube que o dinheiro para a operação, 350 contos, não
estava disponível. Passou dias esperando a liberação dessa verba. Em 10 de
fevereiro de 1847, enfim, começou a receber os credores e encaminhar os
recursos. Um certo Fidélis, de São Gabriel, acusou prontamente a comissão de
entregar por fora, através do “mulato Anastácio”, 11 mil patacões a David
Canabarro, que, segundo o denunciante, receberia ainda mais 30 mil por papéis
de outro, o que hoje se rotularia de “laranja”, um tal de Francisco Maciel de
Oliveira.
Fidélis acusava também o presidente da comissão de ser o negociante mais
forte de São Gabriel. Embora a redação de Fontoura seja confusa, chamando esse
Fidélis de mentiroso, é possível saber que um sujeito teve um lucro de seis
contos na indenização, pois muitos haviam adquirido papéis de outros com
deságio. A especulação correu solta. Houve quem adquirisse papéis com 50% de
desconto. O melhor vem quando a pena de Fontoura se torna mais clara: “Poucos
dias depois de se haver retirado o Fidélis, chega o homem mais infame que tem
produzido o Rio Grande – Bento Glz da Silva…” Era assim que Fontoura
qualificava o chefe farroupilha, “o mais infame”. Bento era sempre o primeiro
em tudo. Segundo Fontoura, Bento tratou de espalhar as mesmas denúncias do tal
Fidélis, alegando também ser prejudicado pela comissão. Pelo jeito, ele ameaçou
o inimigo, transformado em homem do caixa, com palavras destituídas de
ambiguidade: “E que devia morrer que ele mesmo seria o primeiro a
assassinar-me”. Por certo, bastaria uma vez.
O coronel Marques, herói imperial tido por todos como um homem probo,
ciente das reclamações, teria chamado Bento Gonçalves de o “chupador mais
sem-vergonha”. É incrível como certas expressões conseguem se manter atuais.
Para calar a boca do caudilho, que exigia 10 contos de réis, foram pagas as
indenizações de certos indivíduos. Fontoura ressentia-se do fato de que Bento
jogava contra ele os inimigos da pacificação, gente que não tinha ficado
contente com o entendimento secreto entre Canabarro, por meio de Fontoura, e o
império. Houve pressões, jogos de influência, apadrinhamentos, apresentação de
papéis pertencentes a terceiros. O valor disponível era muito inferior à soma
reclamada pelo conjunto dos “credores”. Bernardo Pires, grande amigo de
Domingos José de Almeida, esperava mais de 60 contos. Fontoura deixou os
valores maiores para o fim. Não custa lembrar que pela relação de Rodrigo
Moreira foram feitos pagamentos secretos também em 1845 e em 1846.
“O dinheiro que recebi e que foi distribuído consta do Imparcial nº
248”, diz Vicente da Fontoura, antes de vituperar mais uma vez contra Bento
Gonçalves, que “já tinha recebido os dez contos de réis”, mas queria mais. Como
fazia os pagamentos na casa onde estava hospedado, esta se “tornou para mim o
verdadeiro inferno, porque sem força moral, e sem força física pela maneira
insólita com que a respeito se tem havido o governo, todos ou quase todos se
julgavam habilitados para expenderem suas palavras, segundo o grau de educação
que os qualificava”. Resumo da epopeia: especulação, mentiras, chantagem,
ameaças e insultos. Antônio Vicente da Fontoura, ao final da carta, pedia
obviamente “completo sigilo” de tudo.
José Antônio Silva (CV 4888) acusou a comissão de indenizações de fazer
negócios particulares “pagando por menos da metade em dinheiro, fazendas e a
prazos”. Fontoura respondeu ao pai do falecido: “Que infame e insolente
mentira”. Não foram poucas as reclamações desse naipe. Certos historiadores
preferem poupar o leitor da catilinária dessa carta de péssima redação e alto
teor de denúncia implacável. Antônio Vicente da Fontoura nunca deixou de ser
visceral. Quando negociava a paz, enfrentou resistências de Neto, Bento
Gonçalves, Almeida e até de João Antônio. No seu Diário, anotou algumas
explicações para essas corajosas tentativas de continuar a guerra: “Será
crível? Poder-se-ia acreditar que João Antônio é também um desses entes
corrompidos que não querem a paz? João Antônio? E não a quer só porque não lhe
confirmou o governo imperial a patente de general!” (10 de fevereiro de 1845).
Lucas de Oliveira também teria hesitado em apoiar a paz, em certo momento, por
medo de não ter seu posto militar reconhecido pelo império. Foi atendido.
Sem qualquer menção às denúncias do tal Fidélis contra a comissão de
indenizações, Souza Docca (apud Calvet Fagundes, p. 374) garante que o nome de
Canabarro “não figura na lista ignominiosa dos ajustes de contas”. O general de
Porongos não teria recebido “um real dos cofres do império, quando se firmava a
paz e em seguida a esta”. Não teria se abastardado “nessa sedutora e miserável
questão de dinheiro, em que os homens fúteis, fracos e covardes, esquecem que o
maior dos tesouros é a probidade, e conseguem meios para um passageiro
bem-estar material, em troca da execração eterna dos seus nomes”. Portanto a
lista deve mesmo ser vista como ignominiosa? Todos esses adjetivos podem ser
aplicados a Bento Gonçalves? E a Domingos José de Almeida? Afinal, foi
exatamente o que deles disse mil vezes Antônio Vicente da Fontoura. A defesa de
um enterra outros ainda mais.
O pudor de certos historiadores pode atingir níveis inimagináveis. O
tenente-coronel Henrique Oscar Wiedersphan, comentando essa carta de Antônio
Vicente da Fontoura e seus chiliques na comissão de indenizações, alega que
Bento Gonçalves recebeu “apenas 4:800$00” de uma dívida reconhecida de
5:517$696, sendo que Fontoura teria tentado impedir o pagamento ao inimigo. Num
acesso de discrição incomensurável o historiador militar prefere abster-se de
“transcrever a verdadeira catilinária redigida e apresentada pelo mesmo Antônio
Vicente da Fontoura a Manuel José Pereira da Silva e aos demais membros da
comissão (…) na qual denomina Bento Gonçalves da Silva como o homem mais infame
que tem produzido a província, citando-o cerca de quatro vezes mais em termos
acres e até acintosos…” (1980, p. 111). Onde se viu desconfiar dos farroupilhas
e insinuar pressões indevidas do presidente da província? Ao menos, Wiedersphan
remete o leitor mais persistente para a fonte onde poderá ler a íntegra dessa
catilinária da qual preferiu poupá-lo como um jornalista disposto a passar ao
largo da notícia para não ser acusado de sensacionalismo.
Alfredo Ferreira Rodrigues, com a autoridade suprema de quem viveu
depois dos fatos, tem uma versão mais cândida de tudo: “Os chefes da revolução,
os responsáveis por ela, não pensavam em proventos pessoais, cuidaram apenas de
garantir os direitos dos seus companheiros de armas e de legalizar os atos
praticados durante a república pelas autoridades civis e eclesiásticas. Eles
foram os únicos que não tiveram os seus postos reconhecidos, os únicos que nada
pediram para si, a não ser o direito de viverem na pátria” (1985, p. 284-85).
Como se viu, documentos são como um céu estrelado: podem exibir
diferentes brilhos e outras versões.
*
Nunca é demais lembrar esta anotação de Vicente da Fontoura sobre o
último ato dos revoltosos: “Hoje reuniu David conselho de oficiais, desde
tenente até generais e, expondo as condições da paz, não houve um só voto
contra, ficando todos satisfeitíssimos porque tudo era mui diferente do que
diziam os sequazes da guerra, que com a cara à banda, foram também aprovando e
hoje só cuidam em arrecadar recibos velhos para chuparem o dinheiro que
puderem” (Fontoura, 1984, p. 166).
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